quinta-feira, 14 de abril de 2022

NO ESTÔMAGO DO SONHO

Hoje eu acordei todo machucado. Os tombos foram realmente grandes. Caí dentro do sonho. Ou o certo seria dizer: caí durante o sonho? Ou ainda: sonhei que tinha caído? Não sei. Só sei que caí (várias vezes) em algum lugar no inconsciente e acordei todo danado. Por outro lado, mesmo todo danado, agradeci por ter dormido um pouco e sonhado. Eu, que já quase não durmo mais. Eu, de quem a insônia já se apossou desde há muito. Mas não quero falar da insônia. Queria mesmo é falar de ter caído durante o sonho. (E os tombos foram surrealmente grandes). Ou falar de ter sonhado que caí e despertei todo lanhado. A bem da verdade, acho que eu já estava todo lanhado. Já fazia um tempo. Cair não é algo que acontece assim, da noite pro dia. Ou acontece? Mas fato (mesmo que eu esteja aqui tratando de um sonho) é que nesse tipo de sonho, em que a gente cai, já trazemos (isso mesmo: antes da queda) algum ferimento aberto. Então, quando a gente cai, esse ferimento se abre ainda mais. Abre-se feito uma bocarra que devora o mundo, devora o nosso mundo – e nos devora. E ao nos devorar e ao devorar o mundo, ficamos nós, lá no estômago do sonho, sendo digeridos com todas as mazelas, todas as dores, as nossas e as do mundo; sendo ainda mais machucados pelo suco gástrico. Pelo ácido do intestino. Se a gente pudesse separar o que é só nosso do que é do mundo lá fora seria ótimo. Mas o intestino do sonho mistura tudo. É um moedor de dores e de existências. Da existência consciente e também da inconsciente; da vida particular e suas dores e da vida do mundo; deste mundo em que habitamos, mas do qual só sabemos a fundo de suas dores quando estamos sendo digeridos ao mesmo tempo que ele no estômago do sonho. Quando caímos dentro do sonho. É verdade, e eu entendo, que fica tudo meio sem sentido falar de estômago do sonho, de cair e se machucar dentro do estômago, ser devorado pelo estômago – eu sei. O estômago parece um lugar macio, fofinho, para gente cair devagar (ou vagarosamente), como se caísse num lugar feito de almofadas cheias de ar; mas, mesmo assim, ao despencarmos sobre elas o impacto é violento. A queda é violenta. E não é lenta como deveria ser. É algo abrupto. Dolorido. É como pular do sétimo andar de um prédio e cair diretamente no concreto. Mas o que na verdade me interessa narrar, caro leitor, leitora, é que enquanto eu estava lá, estatelado, todo danado depois da queda (e levando em conta que já havia um ferimento aberto antes dessa queda para dentro do estômago do sonho), eu fui sendo ferido com outras coisas ainda. Portanto, é preciso dizer que havia mais alguém comigo dentro do estômago do sonho. Era uma mulher, com um sotaque estranho; falava a mesma língua que eu e ao mesmo tempo não falava. Havia uma distorção em sua voz, que parecia algo forjado. Não só a voz, as coisas que ela dizia também pareciam forjadas. Para falar a verdade, eu não conseguia ouvir muito bem o que ela dizia; mas, caro leitor, leitora, no sonho não precisamos de verossimilhança; por isso, mesmo não ouvindo bem ou não entendendo bem o que ela pronunciava eu entendia o que ela queria dizer. E como vou lhes explicar isso? Eu entendia tudo, mas não consigo ser objetivo ao tentar reproduzir o que ela dizia porque simplesmente tudo o que essa pessoa dizia era contraditório, confuso, afirmações e negações ao mesmo tempo – aquela mulher era uma espécie de oxímoro em forma de gente. A oxímoro (vou chamá-la assim) segurava uma mangueira de corpo de bombeiros e numa determinada altura da conversa (conversa que eu entendia mas que não consigo lhes explicar, reitero) ela a apontou em minha direção, e nessa hora (que momento luminoso é esse quando a gente consegue entender claramente o que o outro diz e com isso pode elaborar uma narrativa com pouquíssimos entraves!), e nessa hora eu consegui pescar o que ela disse (pausa nos oximoros), foi algo como “Lá fora, na vida consciente, eu derreti sua confiança, minei sua capacidade, destruí seu desejo pela vida; agora, aqui dentro, desse mundinho do sonho, vou acabar o serviço, espero que goste da dose cavalar de suco gástrico que eu preparei para você”. E nem houve tempo para qualquer reação minha. Comecei a receber o jato de suco gástrico por todo o corpo. A oxímoro estava mesmo determinada a concluir o serviço começado fora do sonho. E eu já podia sentir minha pele descolando da carne, a carne descolando dos ossos, as pontas dos dedos desaparecendo, meu sexo ardendo em ácido, meu couro cabeludo escorrendo pela face e pelo pescoço junto aos meus cabelos. Por sorte, quando a oxímoro fechou a mangueira, meus olhos estavam preservados; na verdade, um deles: o direito, se é que o lado importa. No começo, com esse olho direito (ou esquerdo, o lado talvez importe), eu enxerguei tudo meio desfocado (para piorar, eu havia perdido os meus óculos), mas aos poucos a imagem da oxímoro foi se tornando mais nítida. Agora, ela tinha uma arma apontada em minha direção. Antes de começar o fuzilamento, ela disse algo (e que momento luminoso é esse quando a gente consegue entender claramente o que o outro diz e com isso pode elaborar uma narrativa com pouquíssimos entraves!), algo como “Vamos tomar um pouquinho do seu ansiolítico, tem também seu antidepressivo e mais um que não podia faltar, mas vai faltar: aquele: pra dor crônica. O ombro direito, o pescoço – o lado direito todo dói, certo? Não precisa responder”. Enquanto ela, sádica, me dizia isso, começou a disparar contra mim. Mas não eram projéteis de arma de fogo, eram comprimidos. Só que bem grandinhos e pontiagudos. Eu estava sendo metralhado por ansiolíticos e antidepressivos. Comecei, então, a implorar (e não houve como não fazê-lo), a implorar para que a oxímoro disparasse em mim o remédio contra dor. Nisso, sua voz ficou ainda mais distorcida e agora ela ria alto. Depois, recarregou a arma e disse algo como “Quer essa porcaria pra dor? Então, pega lá na parede”. E começou a disparar os enormes comprimidos contra a parede do estômago. Os vários furos que iam se formando soltavam jatos de sangue. Fiquei todo ensanguentado. Não sei como ainda consegui me levantar. Levantei, mas escorreguei. O piso se tornou muito mais liso naquele lugar. Escorreguei e então fui deslizando. Deslizando. Até entrar por um tubo meio apertado. Certamente, o intestino delgado. Logo depois, o tubo se alargou e o passeio até que foi ficando agradável. Eu sabia que ao final havia uma saída. Mas que nada! Comecei a dar voltas, o tubo de repente ganhou a forma de uma escada helicoidal, mas sem os degraus. E eu fui deslizando e o tubo parecia infinito, parecia não ter mais fim ou uma saída. E não sei como (e não me cobrem verossimilhança) eu ainda podia ouvir a voz da oxímoro gritando algo como “Você nunca vai sair de dentro de você mesmo, não tem como, este intestino é seu, este corpo em que você está preso é o seu. E eu vou ficar aqui acompanhando a sua desgraça, a sua queda infinita até quando eu bem quiser, pois eu posso sair do seu corpo; mas você, nunca”. E foi nesse momento que as paredes do intestino começaram a mudar. Já não eram mais lisas, pareciam agora um muro desses com chapisco de brita, e eu batia contra o muro e ia descendo pelo tubo helicoidal me esfolando mais ainda nas suas paredes de pedrinhas pontiagudas. Não havia como não gritar. E eu não queria gritar, pois a oxímoro ia rir ainda mais da minha desgraça. Mas gritei. Gritei muito. E a oximoro, inferno!, começou a rir. Muito. E muito alto. Tentei me pôr em pé. Até o momento eu descia sentado. Tentei. Mas não consegui me sustentar e caí outra vez. E segui descendo e batendo contra o muro. Já não havia mais onde sentir dor, onde me ferir. Eu era um ferida. Uma ferida só. Lá pela nonagésima vez que tentei me levantar e caí, acordei aqui, bem aqui nesta minha cama. De onde não consigo levantar. De onde não conseguirei sair mais. Acho que a minha cama é o meu próprio corpo do qual não consigo e não posso sair, jamais. Mas aqui fora do sonho, fora do estômago e do intestino do sonho, existe (além de estar todo lanhado) uma realidade talvez ainda pior, que é receber uma mensagem no celular dizendo “Oi, sou eu! Comprei seus comprimidinhos e junto estou levando um suquinho especial pra você! Não saía dessa cama! É uma ordem! Bjs”.